INTERDISCIPLINARIDADE: O OLHAR DA HISTÓRIA DA CIÊNCIA
Prof. Dr. Diamantino Fernandes Trindade
RESUMO
O objetivo deste trabalho é apresentar alguns conceitos básicos sobre a interdisciplinaridade e o papel da História da Ciência como instrumento pedagógico para o ensino das ciências de modo a superar as fronteiras do conhecimento restrito e fragmentado que tem origem na Ciência Moderna. A prática interdisciplinar pressupõe uma ruptura com o tradicional e com o cotidiano tarefeiro escolar. O movimento da interdisciplinaridade é caracterizado por atitudes que se constituem como interdisciplinares: atitude de humildade diante dos limites do saber próprio, sem deixar que ela se torne um limite.
Palavras-chave: Interdisciplinaridade, Ciência, História da Ciência, Ensino.
ABSTRACT
The aim of the present study was to present some basic concepts of interdisciplinarity and the role of History of Science as a pedagogical tool of the science teaching in a way to overcome the frontiers of restrict and fragmented knowledge which has its origins in Modern Science. The interdisciplinary practice presupposes a breakthrough intradicional and everyday school jobbing. The interdisciplinarity is made of interdisciplinary attitudes, such as, humble attitudes towards the limitations of your own knowledge, not letting it become an obstacle.
Key words: History of Science, Interdisciplinarity, Science, Teaching.
A exigência interdisciplinar impõe a cada especialista que transcenda sua própria especialidade, tomando consciência de seus próprios limites para acolher as contribuições de outras disciplinas.
Georges Gusdorf
Adotando uma nova visão, que reconheço como interdisciplinar, da área de Ciências da Natureza, percebi que a História da Ciência pode ser uma disciplina aglutinadora. A contextualização sociocultural e histórica da Ciência e tecnologia associa-se às Ciências Humanas e cria importantes interfaces com outras áreas do conhecimento. O caráter interdisciplinar da História da Ciência não aniquila o caráter necessariamente disciplinar do conhecimento científico, mas completa-o, estimulando a percepção entre os fenômenos, fundamental para grande parte das tecnologias e desenvolvimento de uma visão articulada do ser humano em seu meio natural, como construtor e transformador desse meio.
A História da Ciência possibilita a construção e uma compreensão dinâmica da nossa vivência, da convivência harmônica com o mundo da informação, do entendimento histórico da vida científica, social, produtiva da civilização, ou seja, é um aprendizado com aspectos práticos e críticos de uma participação no romance da cultura científica, ingrediente primordial da saga da humanidade.
Torna-se necessário, assim, oferecer certos elementos e instrumentos conceituais básicos a respeito da interdisciplinaridade a fim de que se garanta a compreensão dos principais problemas epistemológicos envolvidos nesse processo pedagógico. Não há aqui a intenção de fornecer uma definição acabada do que seja interdisciplinaridade, e sim refletir sobre algumas preocupações que fazem emergir uma nova forma de pensar e de agir sobre o mundo. No mundo atual, envolvido pelas exigências de contexto globalizante, é importante repensar as reivindicações geradoras do fenômeno interdisciplinar e suas origens, que desencadearam uma nova ordem de pensar sobre o homem, o mundo e as coisas do mundo, que se encontra em franca efervescência.
O fenômeno da interdisciplinaridade como instrumento de resgate do ser humano com a síntese projeta-se no mundo todo. Mais importante que conceituar é refletir a respeito de atitudes que se constituem como interdisciplinares. A dificuldade na sua conceituação surge porque ela está pontuada de atitudes e não simplesmente em um fazer; entretanto, precisa ser bem compreendida para que não ocorram desvios na sua prática, o que me levou a refletir sobre as reivindicações que a geraram e sobre suas origens. Isto é um exercício fascinante, já que ela pavimentou o caminho para outra nova ordem de se pensar o ser humano, o mundo e as coisas do mundo; velhos caminhos há muito esquecidos foram reabertos e, além disso, permitiu rever conceitos e certezas cristalizados na mente humana e viajar no tempo.
O retorno às origens da significação humana do conhecimento é uma possibilidade de resgate da história do saber, é encontrar em cada paragem vivências e experiências relegadas ao esquecimento, deixadas de lado, até ridicularizadas, porque míticas, místicas, devocionais, ou mágicas, portanto subjetivas, contrariavam o racionalismo e a objetividade, dogmas adotados pela Ciência Moderna.[1]
No entanto, são componentes do humano, habitam a alma de todos nós e, freqüentemente, decidem nossas ações.
O que estamos querendo dizer é que a ciência, por mais que elabore um discurso racional e objetivo, jamais poderá estar inteiramente desvinculada de suas origens religiosas, místicas, alquimistas ou subjetivas. [2]
Isto não significa que a atitude científica deva ser igualada à mística e uma reduzida à outra. A Ciência, na forma em que a conhecemos e a construímos no decorrer do tempo, não necessita do misticismo, nem este dela. No entanto, o ser, como humano, emerge da relação harmônica e dinâmica entre ambos.
Vivemos momentos de transição, de questionamentos, uma época em que nossos saberes e nossos poderes parecem estar desvinculados. Mais do que isso, o saber atual fragmentado dispersou-se pelo planeta e o centro dessa circunferência que antes era ocupado pelo homem se encontra, agora, vazio. O fantástico desenvolvimento científico e tecnológico que ora vivenciamos também trouxe uma preocupante carência de sabedoria e introspecção.
Ciência e tecnologia lançaram-se em uma correria cega sem prestarem atenção à paisagem de humanidade que as cerca, sem sonhar com o que deixaram atrás delas, para melhor obedecerem ao espírito frenético de conquista que as arrasta para um terrível futuro. [3]
Na ciência moderna, eleita a condutora da humanidade na transição das trevas para a luz, o conhecimento desenvolveu-se pela especialização e passou a ser considerado mais rigoroso quanto mais restrito seu objeto de estudo; mais preciso, quanto mais impessoal. Eliminando o sujeito de seu discurso, deixou de lado a emoção e o amor, considerados obstáculos à verdade.
Especializado, restrito e fragmentado, o conhecimento passou a ser disciplinado e segregador. Estabeleceu e delimitou as fronteiras entre as disciplinas, para depois fiscalizá-las e criar obstáculos aos que as tentassem transpor. A excessiva disciplinarização do saber científico faz do cientista um ignorante especializado. [4]
Criou um pássaro, deu-lhe asas potentes, mas que só alça vôo no campo restrito da sua especialidade – trancou-o em uma gaiola. Também é verdade que isso possibilitou uma grande produção de conhecimento e tecnologia e permitiu melhores condições de sobrevivência. Contudo, as condições básicas para uma vida digna ainda não atendem a uma parcela importante da população mundial. Exploramos mundos distantes, do infinitamente grande ao infinitamente pequeno, mas pouco conhecemos sobre nós mesmos. Não há respostas para as questões fundamentais: seres vivos, não sabemos o que é vida; desconhecemos nossa origem e nosso destino.
Agora, novas realidades apresentam-se irredutíveis a componentes básicos ou princípios fundamentais, inexistentes em locais definidos do espaço, onde o tempo não é Cronos e nada tem significado isoladamente, tudo depende do todo. No entanto, na era do triunfo da razão, o irracionalismo parece se sobressair. Há muito, não temos um único dia de paz. Estamos na situação de Prometeu: roubamos o fogo do interior do átomo. Só que pela primeira vez na sua história, o homem adquiriu o poder de Zeus. [5] Com os conhecimentos da bionanotecnologia podemos modificar o patrimônio genético e interferir no processo da vida.
A ciência, utopia dos tempos modernos, prometeu bastante. No entanto, em aspectos fundamentais, revela-se decepcionante. Claro que os saberes científicos progrediram muito. Não se trata de contestar sistematicamente a física ou a química. São inegáveis os êxitos das técnicas ou da medicina, todavia os progressos materiais não confirmam de modo decisivo o valor de uma ciência que prometeu tornar a humanidade moralmente melhor; prometeu edificar uma ética e uma política fundadas em princípios científicos; comprometeu-se em revelar ao homem sua verdadeira origem, sua verdadeira natureza e seu verdadeiro destino. Mas não consegue cumprir suas promessas. Tampouco tem condições de resolver objetivamente os grandes enigmas com os quais se defronta a humanidade. [6]
Fruto de um conhecimento e de uma existência fragmentados e alienados, a humanidade assiste, perplexa, à crise das ciências, à crise do próprio homem. Esse saber especializado, distante da vida, sem proveito, interessa-se por tudo, menos pelo essencial, a essência da vida. Ao descobrir e simplesmente descrever fatos que não pode explicar, projeta o homem em um vazio de valores.
Vivemos num mundo conquistado, desenraizado e transformado pelo titânico processo econômico e tecno-científico do desenvolvimento do capitalismo, que dominou os dois ou três últimos séculos. Sabemos, ou pelo menos é razoável supor, que ele não pode prosseguir “ad infinitum”. O futuro não pode ser uma continuação do passado, e há sinais, tanto externamente como internamente, de que chegamos a um ponto de crise histórica. [7]
Uma época de crise configura-se como uma época de rupturas e questionamentos. Um tempo no qual somos convidados a pensar em outras possibilidades, rever antigos conceitos e concepções com um olhar que acolha múltiplas perspectivas e rejeite as explicações únicas ou as verdades universais que até agora nortearam nosso entendimento. É fato que a humanidade vive um momento histórico sem precedentes. A tecnologia diminuiu de tal forma as distâncias e o tempo que já não é figura de linguagem dizer que o mundo é uma pequena aldeia. Utilizada e desenvolvida inicialmente para atender a atividade econômica, a tecnologia faz-se agora sentir em todas as atividades humanas. Culturas diferentes passaram a ter um convívio mais próximo, o que evidenciou a interdependência e, por outro lado, aumentou o desejo de competição e dominação. Muito desentendimento surgiu, porque alguns querem que o mundo seja de uma única maneira, da sua maneira.
Para outros, é uma época difícil e dolorosa, mas também é estimulante e fascinante. Dolorosa, pois toda crise resulta de um descontentamento, efeito dos desmandos acumulados no decorrer do tempo, e fascinante, já que, diante dela, nos resta apenas a possibilidade de reverter tal quadro, procurando por novos caminhos que, provavelmente, ainda não foram traçados.
Entretanto, formado no antigo sistema, o professor depara-se com situações para as quais não foi preparado e convive com o paradoxo de a um só tempo formar o sujeito, o ser individual capaz de refletir sobre sua realidade pessoal, e um cidadão do mundo, capaz de conviver com as diversidades sem perder suas raízes. Parece missão impossível.
O olhar atento de Ivani Fazenda nos traz a uma possibilidade de posicionamento frente a essa crise:
Fala-se em crise de teorias, de modelos, de paradigmas, e o problema que resta a nós educadores é o seguinte: é necessário estudar-se a problemática e a origem dessas incertezas e dúvidas para conceber uma educação que as enfrente. Tudo nos leva a crer que o exercício da interdisciplinaridade facilitaria o enfrentamento dessa crise de conhecimento e das ciências, porém é necessário que se compreenda a dinâmica vivida por essa crise, que se perceba a importância e os impasses a serem superados em um projeto que a contemple. [8]
Se até o início do século XX a visão determinista, de um mundo onde tudo estava ordenadamente colocado em uma regularidade absoluta e previsível, confortava a humanidade, ao mesmo tempo abrigou o paradigma da simplicidade e da perfeita ordem universal. Esta imagem de ordem era, na verdade, de uma extrema pobreza, posto que era a imagem da repetição, incapaz de dar conta do novo e da criação.[9]
A metáfora da ciência moderna era a de um edifício pronto, acabado, e os cientistas conheciam cada um de seus tijolos, suas partículas fundamentais. Mas a partir de alguns descobrimentos na Química e na Física, essa forma de se situar no mundo foi profundamente abalada. Até mesmo a Ciência, que nos oferecia algumas explicações seguras, mostra-se agora povoada por dúvidas e incertezas.
A Teoria da Relatividade de Einstein, o Princípio da Incerteza de Heisenberg, o Princípio da Complementaridade de Niels Bohr, o Princípio da Dualidade de Louis de Broglie, o Teorema da Incompletude de Gödel e a Teoria das Estruturas Dissipativas de Prigogine demonstraram que o universo determinista e mecanicista, passível de ser dividido em partes, era fruto do desejo humano de controle sobre a Natureza e refletia apenas uma crença pessoal, não uma característica intrínseca da mesma. Tal concepção mostrou-se semelhante ao antigo universo animista, no qual deuses e deusas dispunham dos objetos à sua volta para satisfazer seus caprichos. Se no mundo determinista não há história nem criatividade, no mundo vivo a história tem um significado importante; e se o futuro é incerto, é porque na incerteza reside a semente de toda a criatividade.
Tanto a teoria da relatividade quanto a teoria quântica implicam a necessidade de olhar para o mundo como um todo indiviso, no qual todas as partes do Universo, incluindo o observador e seus instrumentos, fundem-se em uma totalidade. Um todo indivisível em movimento fluente caracterizando o efetivo estado das coisas. A totalidade é o ponto vital de qualquer paradigma que surge dessas idéias. [10]
A partir daí, começou a surgir uma nova forma de pensar aliada a uma nova forma de perceber o mundo para se contrapor à fragmentação oriunda do pensamento linear e simplificador acomodado em nossas mentes.
Este pensamento simples, acostumado apenas a abstrações,
...tem nos levado a tratar o meio ambiente natural – a teia da vida – como se ele se constituísse de partes separadas, a serem exploradas comercialmente, em benefício próprio, por diferentes grupos. Além disso, estendemos essa visão fragmentada à nossa sociedade humana, dividindo-a em outras tantas nações, raças, grupos religiosos e políticos. A crença segundo a qual todos esses fragmentos – em nós mesmos, em nosso meio ambiente e em nossa sociedade – são realmente separados alienou-nos da Natureza e de nossos companheiros humanos, e, dessa maneira, diminuiu-nos. Para recuperar nossa plena humanidade, devemos recuperar nossa experiência de conexidade com toda a teia da vida. [11]
Essa reconexão ou religação deixa de enfatizar apenas as partes e articula-se com o todo, em todas as suas implicações, em toda a sua complexidade e riqueza, já que o todo contém sempre algo mais que a soma das partes. Para Morin, daí nasceu uma nova forma de conhecer:
Se quisermos um conhecimento segmentário, encerrado a um único objeto, com a finalidade única de manipulá-lo, podemos então eliminar a preocupação de reunir, contextualizar, globalizar. Mas se quisermos um conhecimento pertinente, precisamos reunir contextualizar, globalizar nossas informações e nossos saberes, buscar, portanto, um pensamento complexo. [12]
A complexidade não traz consigo a idéia de menor perfeição, tampouco se relaciona ao que é complicado, obscuro ou inexplicável. Complexidade significa “o que está ligado, o que está tecido”, portanto, ao reconhecer tal trama, a trama da vida, também reconhece a ordem e a desordem, a eventualidade e a incerteza do conhecimento. Assim se apresentam também o Cosmos e o mundo quântico, onde tudo se mostra interdependente, ligado, tecido, tal qual nos ensinou Palas Athena, em uma impressionante teia de eventos. Aqui não cabe mais o saber absoluto, que se tornou absolutista, ou o saber total, que se tornou totalitário. Porém, ainda cabe o homem.
Para lidar com essa complexidade, a interdisciplinaridade se apresenta como uma possibilidade de resgate do homem com a totalidade da vida. É uma nova etapa, promissora, no desenvolvimento da Ciência, onde o próprio conceito das ciências começa a ser revisto. Além disso, conforme nos lembra Santomé:
Também é preciso frisar que apostar na interdisciplinaridade significa defender um novo tipo de pessoa, mais aberta, mais flexível, solidária, democrática. O mundo atual precisa de pessoas com uma formação cada vez mais polivalente para enfrentar uma sociedade na qual a palavra mudança é um dos vocábulos mais freqüentes e onde o futuro tem um grau de imprevisibilidade como nunca em outra época da história da humanidade. [13]
Interdisciplinaridade é palavra nova que expressa antigas reivindicações e delas, nascida. Para alguns, surgiu da necessidade de reunificar o conhecimento; para outros, como um fenômeno capaz de corrigir os problemas procedentes dessa fragmentação; outros, ainda, a consideram uma prática pedagógica.
Mais importante do que defini-la, porque o próprio ato de definir estabelece barreiras, é refletir sobre as atitudes que se constituem como interdisciplinares: atitude de humildade diante dos limites do saber próprio e do próprio saber, sem deixar que ela se torne um limite; a atitude de espera diante do já estabelecido para que a dúvida apareça e o novo germine; a atitude de deslumbramento ante da possibilidade de superar outros desafios; a atitude de respeito ao olhar o velho como novo, ao olhar o outro e reconhecê-lo, reconhecendo-se; a atitude de cooperação que conduz às parcerias, às trocas, aos encontros, mais das pessoas que das disciplinas, que propiciam as transformações, razão de ser da interdisciplinaridade. Mais que um fazer, é paixão por aprender, compartilhar e ir além. De forma poética, Ruy Cezar do Espírito Santo[14] imagina a interdisciplinaridade assim:
Não há definição
Não há palavra
Não há conceito
Há perfeição
Intuição
Sabedoria nascente...
O saber unificado surgiu quando a consciência humana emergiu da Natureza e expressou-se no mito. Nasceu, portanto, com o humano, como característica do humano. No decorrer dos tempos, com a diversificação das culturas, verificamos várias tentativas de se manter essa unidade. O Cosmos idealizado pelo pensamento grego refletia a condição do homem no mundo – “Conhece-te a ti mesmo e conhecerás os deuses e o Universo” – expressão maior de um conhecer em totalidade: o conhecimento de si, imagem dos deuses e do Universo.
Em uma releitura do passado, Ivani Fazenda com os olhos de presente e de futuro, promove um reencontro com Sócrates na história do conhecimento:
Conhecer a si mesmo é conhecer em totalidade, interdisciplinarmente. Em Sócrates, a totalidade só é possível pela busca da interioridade. Quanto mais se interioriza, mais certezas vão se adquirindo da ignorância, da limitação, da provisoriedade. A interioridade nos conduz a um profundo exercício de humildade (fundamento maior e primeiro da interdisciplinaridade). Da dúvida interior à dúvida exterior, do conhecimento de mim mesmo à procura do outro, do mundo. Da dúvida geradora de dúvidas à primeira grande contradição e nela a possibilidade de conhecimento... Do conhecimento de mim mesmo ao conhecimento da totalidade. [15]
Esse saber em totalidade, do que há de universal e de total no ser, expressava-se também no programa de ensino dos mestres gregos, a Paidéia,
que não se reduzia a um acúmulo de conhecimentos. Ao contrário, seu objetivo centrava-se em permitir a formação e o desabrochar da personalidade integral. A Academia de Platão, o Liceu de Aristóteles e o Museu de Alexandria perseguiam este ideal e foram, em suas épocas, centros produtores do saber. [16]
O mesmo conceito persistiu no trivium (gramática, retórica e dialética) e no quadrivium (aritmética, música, astronomia e geometria) do orbis doctrinae, as sete artes liberais, uma forma de preservar e transmitir o conhecimento no período chamado medieval. Nessa época, o ensino tornou-se privilégio da Igreja Católica e acontecia nas escolas dos mosteiros. Daí surgiram as universidades, com o mesmo objetivo: o do conhecimento integral baseado nos valores religiosos. Até então, acreditava-se que as estruturas humanas, divinamente estabelecidas, não necessitavam de qualquer mudança fundamental.
A estrutura científica que predominava nessa visão de mundo orgânica estava assentada no naturalismo aristotélico e na fundamentação platônico-agostiniana, e, depois, tomista, que consideravam de maior significância as questões referentes a Deus, à alma humana e à ética. Naquela época, o objetivo principal da filosofia era servir de base à teologia e tinha como causa de suas preocupações religiosas a salvação da alma após a morte. [17]
O regime social medievo entrou em processo de decadência e, com ele, os ideais que lhe eram pertinentes. O Universo orgânico, vivo e espiritual começou a ceder. A fé e a contemplação não eram mais consideradas vias satisfatórias para se chegar à verdade. Roma locuta, causa finita[18] deixou de ser a norma e um novo caminho precisava ser encontrado.
Desde a Antiguidade, os objetivos da investigação científica tinham sido a sabedoria, a compreensão da ordem natural e a vida em harmonia com ela. A ciência era realizada para a maior glória de Deus ou, como diziam os chineses, para acompanhar a ordem natural e fluir na corrente do Tao. [19]
Como a Lei do Universo é o movimento, é a transformação, o homem também se transforma, as condições sociais e culturais modificam-se e acabam por propiciar grandes mudanças. Assim, ao percorrermos a história da humanidade, observamos o surgimento de uma nova mentalidade que deslocou o conhecimento das verdades divinas para as verdades do conhecimento humano. Nascia o indivíduo soberano, cuja existência estava além do seu lugar na rígida sociedade hierarquizada do sistema feudal. Essa mudança na maneira de como o homem via a si mesmo e ao mundo em que vivia marcou o início da Revolução Científica. Iniciada no século XV, estendeu-se até o final do século XVII.
A Terra já não era mais o centro de um mundo limitado pelos céus. O Universo – infinito e dinâmico – revelou-se muito diferente do ideal da perfeição. Também ele conhecia nascimento e morte, organização, desorganização e transformação.
O deslocamento de Deus, que até então ocupava o centro do Universo foi seguido de uma profunda dúvida quanto ao lugar do homem e foi nesse ambiente de mundos em conflito que René Descartes (1596 – 1650) desenvolveu sua filosofia. Ao propor a existência de dois mundos distintos e irredutíveis: o da matéria e o da mente sugeriu que apenas na mente residia o “eu”, e a matéria deveria ser tratada como algo desprovido de vida. A divindade, agora isolada do mundo, passou a ser o “Primeiro Motor da Criação” e, a partir daí, todo o mundo material poderia ser descrito em termos matemáticos. O conceito da natureza, como mãe nutriente, foi substituído pela metáfora do Universo como um relógio, que representava a ruptura com o tempo sagrado e indicava também uma ruptura com a Igreja. O mundo como uma máquina, destituída de emoção e de vida. Em Fazenda, encontramos que:
O mim mesmo, o eu, o sou são reduzidos ao penso. Somente conheço quando penso. Conheço com o intelecto, com a razão, não com os sentimentos. Conheço minha exterioridade e nela construo meu mundo, um mundo sem mim, um mundo que são eles, porém não sou eu, nem sou eu, nem somos nós. A razão alimenta-se até exaurir-se de objetividades. Quando nada mais resta, tenta lançar mão da subjetividade, porém, ela não é alimento adequado, porque adormecida, porque entorpecida. [20]
A fé no modelo científico, fora do qual não há qualquer verdade, foi o fator limitante da concepção cartesiana e, no entanto, é, ainda hoje, muito difundida. Seu método, baseado no raciocínio analítico, alavancou o desenvolvimento do pensamento científico, contudo de outro lado, acabou provocando uma profunda cisão no nosso modo de pensar, gerando o ensino disciplinar compartimentado.
Parte da problemática educacional da atualidade decorre da visão de mundo cartesiana, do sistema de valores que lhe está subjacente, de correntes psicológicas que muito influenciaram e que continuam influenciando a educação. [21]
O tempo do saber unitário passou a sofrer uma desintegração crescente a partir do advento da modernidade. No século XVII, o surgimento das academias, para Japiassu, [22] foi uma tentativa de responder às necessidades de comunicação e do reagrupamento do saber unitário, aparecendo, assim, a primeira exigência interdisciplinar como compensação pela fragmentação inevitável do conhecimento.
No século XVIII, diante da necessidade de reunir todo o saber acumulado e como resultado de uma nova ordem econômica, social e intelectual, foi publicada a Encyclopedie. Segundo Chassot, [23] a intenção de Diderot e D’Alembert fora a de reunir o conhecimento disperso, sob a autoridade da Ciência, buscando uma conexão entre os diversos ramos do saber. Mas as tentativas mostraram-se improfícuas.
Em decorrência dos avanços tecnológicos do século XIX, surgiram novas ciências, novas especializações. Nas regiões de fronteira de cada disciplina, apareceram outras mais. Para Japiassu, [24] verdadeiras cancerizações epistemológicas.
Iniciou-se o século XX e novos descobrimentos assombraram a humanidade. A Ciência consolidou-se como a única possibilidade de um saber verdadeiro, de se conhecer a realidade desvelada, e que algum dia, possibilitaria ao homem adquirir o conhecimento dos arcanos divinos. Mas veio a Primeira Guerra Mundial; logo depois, a Segunda, e com ela Hiroshima e Nagasaki, a exterminação em massa; depois, as catástrofes ecológicas, a crise de energia, a escassez de água potável... Longe de cumprir suas promessas, concretizou as mais sombrias predições. A crise alojara-se como reflexo de um saber/existir fragmentado.
Diante desse quadro, a necessidade de uma retomada da unidade perdida cresceu. Assim é que a Europa anunciou, na década de 1960, a interdisciplinaridade, como uma forma de oposição ao saber alienado, como um símbolo de retorno do humano no mundo. Como vimos, longe de ser uma necessidade do nosso tempo, o tema do conhecimento interdisciplinar remonta à época de sua desintegração. Por isso sua meta não é a de originar uma nova ciência que se situaria para além das disciplinas particulares, mas seria uma “prática” específica visando à abordagem de problemas relativos à existência cotidiana. [25]
No Brasil, a interdisciplinaridade chegou no final dos anos 1960 e, de acordo com Fazenda, com sérias distorções, como um modismo, uma palavra de ordem a ser explorada, usada e consumida por aqueles que se lançam ao novo sem avaliar a aventura. Diz ainda que, no início da década de 1970, a preocupação fundamental era a de uma explicitação terminológica.
A necessidade de conceituar, de explicitar, fazia-se presente por vários motivos: interdisciplinaridade era uma palavra difícil de ser pronunciada e, mais ainda, de ser decifrada. Certamente que antes de ser decifrada, precisava ser traduzida, e se não se chegava a um acordo sobre a forma correta de escrita, menor acordo havia sobre o significado e a repercussão dessa palavra que ao surgir anunciava a necessidade da construção de um novo paradigma de ciência, de conhecimento, e a elaboração de um novo projeto de educação, de escola e de vida. [26]
Em 1976, Hilton Japiassu, o primeiro pesquisador brasileiro a escrever sobre o assunto, publicou o livro Interdisciplinaridade e a Patologia do Saber, onde apresenta os principais problemas que envolvem a interdisciplinaridade, as conceituações até então existentes e faz uma reflexão sobre a metodologia interdisciplinar, baseado nas experiências realizadas até então.
Outro evento importante foi a publicação, em 1979, da obra de Ivani Fazenda, Integração e Interdisciplinaridade no Ensino Brasileiro: Efetividade ou Ideologia, onde busca estabelecer a construção de um conceito para interdisciplinaridade. Coloca a interdisciplinaridade como uma atitude, um novo olhar, que permite compreender e transformar o mundo, uma busca por restituir a unidade perdida do saber.
A década de 1980 caracterizou-se mais pela busca dos princípios teóricos das práticas vivenciadas por alguns professores. A perspectiva era a de superar esta fragmentação gerada pela perda do conhecer em totalidade. Apesar disso, a interdisciplinaridade continuou a se disseminar de forma indiscriminada, já que, de fato, poucos professores a conheciam. Assim, nos anos 1990, um grande número de projetos, denominados interdisciplinares, surgiu ainda baseados no modismo, infelizmente sem qualquer fundamentação.
Por outro lado apareceu, conforme Fazenda, [27] neste mesmo tempo, um processo de conscientização da abordagem interdisciplinar, expressa no comprometimento do professor com seu trabalho e alimentada pelas experiências e vivências de suas próprias práticas pedagógicas. Anunciavam, então, possibilidades de, mais do que vencer os limites impostos pelo conhecimento fragmentado, tornar essas fronteiras disciplinares territórios propícios para os encontros.Para compreender melhor o sentido do termo interdisciplinar, é necessário, considerar as diferentes perspectivas de abordagem propostas por Yves Lenoir: [28] a lógica do sentido, a lógica da funcionalidade e a lógica da intencionalidade fenomenológica.
A lógica do sentido é caracterizada por aspectos críticos da epistemologia, ideológicos e sociais do continente europeu e, em particular, da França, mantendo uma estreita relação com o saber disciplinar e com a apropriação do saber, ou seja, a instrução nos moldes do espírito do pensamento republicano francês. Para os franceses, educar é sinônimo de instruir. É uma concepção resultante do pensamento racional de Descartes e da ação filosófica de Voltaire e da de outros filósofos. Questiona-se antes o sentido da ação em que é muito importante a relação do saber para a disciplina científica.
A lógica da funcionalidade baseia-se no desenvolvimento do saber fazer. Para os norte-americanos, a liberdade humana passa pela socialização, que abarca estes três aspectos. Tal liberdade não mantém ligação direta com os conhecimentos mas, sim, com a capacidade de agir dentro e sobre o mundo. A educação caminha pelos sentidos da prática das relações humanas e sociais. Ocorre, então, o desenvolvimento de um conceito vocacional centrado no desenvolvimento simbólico, que concilia a ética protestante e a nova ordem industrial, além do desenvolvimento de formações profissionais. Este conceito é proveniente da necessidade de inserção e integração do ser humano em uma sociedade jovem multiética e religiosa, pois os valores religiosos puritanos do Protestantismo evidenciam o trabalho como realização de ajudar e agradar a Deus em contraponto ao Catolicismo Romano para o qual o trabalho não é valorizado como via de salvação.
Para os norte-americanos a relação com o sujeito é primordial e o ponto central não é o do saber e sim o da funcionalidade, do saber fazer, que requer um pouco do saber ser. Ficam então em evidência as questões pedagógicas que propiciam os meios mais pertinentes para atender a essas finalidades, de modo que o sujeito possa integrar-se, através de suas aprendizagens, às normas e aos valores sociais apropriados no cerne do currículo, além de desenvolver habilidades práticas para a sua intervenção no mundo.
A lógica brasileira da intencionalidade[29] fenomenológica está direcionada para o terceiro elemento do processo didático, que passa pela mão do professor no seio de sua pessoa e de sua ação. A interdisciplinaridade volta-se para o ser humano e procede então uma aproximação fenomenológica. Ivani Fazenda faz uma construção metodológica do trabalho interdisciplinar fundamentado na análise introspectiva do professor e de suas ações docentes, de modo que possibilita o ressurgimento dos seus aspectos interiores que lhe são desconhecidos.
Não existe nada suficientemente conhecido. Todo o contato com o objeto a conhecer envolve uma readmiração e uma transformação da realidade. Se o conhecimento fosse absoluto, a educação poderia constituir-se em uma mera transmissão e memorização de conteúdos, mas como é dinâmico, há necessidade da crítica, do diálogo, da comunicação, da interdisciplinaridade. [30]
A perspectiva adotada é fortemente influenciada pela fenomenologia com o olhar dirigido para a subjetividade no plano metodológico. A aproximação fenomenológica da interdisciplinaridade mostra a crença na intencionalidade, na necessidade do autoconhecimento, na intersubjetividade e no diálogo, centrando-se no saber entendido como a descoberta do apoio para o estudo dos objetos inteligíveis e a necessidade de atitudes reflexivas sobre a sua ação.
Estas três lógicas distintas, saber, fazer e sentir aproximam a interdisciplinaridade das diferentes perspectivas que mostram a existência de seus distintos conceitos teóricos em educação. Faz-se necessário apreender cada uma delas dentro de sua singularidade e perceber a complementaridade entre elas.
A revisão contemporânea do conceito de Ciência nos direciona para a exigência de uma nova consciência, que não se apóia somente na objetividade, mas que assume a subjetividade em todas as suas contradições.
Vários grupos de pesquisa no mundo todo vêm discutindo e anunciando a superação das limitações impostas pelo conhecimento fragmentado e compartimentado, proveniente inclusive das especializações, por meio da interdisciplinaridade, cuja proposição permite reconhecer não só o diálogo entre as disciplinas, mas também, e, sobretudo, a conscientização sobre o sentido da presença do homem no mundo.
A construção da pesquisa em interdisciplinaridade na corrente de FAZENDA obriga a transformação do pesquisador de mero agente, operário da pesquisa, em livre-pensador e formador de opinião, dado que este se torna o “dono” de seu próprio método. Ele não tem a obrigação de coletar dados, como de fazer parte destes dados. O objeto de pesquisa torna-se seu próprio pesquisador. [31]
A prática interdisciplinar pressupõe uma desconstrução, uma ruptura com o tradicional e com o cotidiano tarefeiro escolar. O professor interdisciplinar percorre as regiões fronteiriças flexíveis onde o “eu” convive com o “outro” sem abrir mão de suas características, possibilitando a interdependência, o compartilhamento, o encontro, o diálogo e as transformações. Esse é o movimento da interdisciplinaridade caracterizada por atitudes ante ao conhecimento.
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[1] Lais dos Santos Pinto Trindade. A alquimia dos processos ensino-aprendizagem em Química, p. 36.
[2] Hilton Japiassu. Revolução científica moderna, p. 53.
[3] Georges Gusdorf. Prefácio. In: Hilton Japiassu. Interdisciplinaridade e Patologia do Saber, p. 23.
[4] Boaventura Souza Santos. Um discurso sobre as ciências, p. 46.
[5] Zeus é o mais importante dos deuses do panteão grego. Domina o céu e os fenômenos atmosféricos (chuva, raios, trovões), principalmente; mantém a ordem e a justiça no mundo, pois distribui os bens e os males.
[6] Hilton Japiassu. Revolução científica moderna, p. 208.
[7] Eric Hobsbawn. Era dos extremos: o breve século XX – 1914-1991, p. 562.
[8] Ivani Fazenda. Interdisciplinaridade: História, Teoria e Pesquisa, p. 14.
[9] Edgar Morin. A religação dos saberes: o desafio do século XX, p. 206.
[10] Maria Cândida de Moraes. O paradigma educacional emergente, p. 70.
[11] Fritjof Capra. O ponto de mutação, p. 230.
[12] Edgar Morin. A religação dos saberes: o desafio do século XXI, p. 566.
[13] Jurjo Torres Santomé. Globalização e interdisciplinaridade: o currículo integrado, p. 45.
[14] Desafios na formação do educador, p. 124.
[15] Ivani Fazenda. Interdisciplinaridade: história, teoria e pesquisa, p. 15.
[16] Hilton Japiassu. Interdisciplinaridade e patologia do saber, p. 89.
[17] Maria Cândida de Moraes. O paradigma educacional emergente, p. 33.
[18] Roma falou, caso encerrado!
[19] Fritjof Capra. O ponto de mutação, p. 52.
[20] Ivani Fazenda. Interdisciplinaridade: história, teoria e pesquisa, p. 16.
[21] Maria Cândida de Moraes. O paradigma educacional emergente, p. 121.
[22] Hilton Japiassu. Interdisciplinaridade e patologia do saber, p. 67.
[23] Attico Chassot. A ciência através dos tempos, p. 168.
[24] Hilton Japiassu. Interdisciplinaridade e patologia do saber, p. 89.
[25] Gerard Fourez. A construção das ciências, p. 136.
[26] Ivani Fazenda. Interdisciplinaridade: história, teoria e pesquisa, p. 16.
[27] Ivani Fazenda. Novos enfoques da pesquisa educacional, p. 112.
[28] Yves Lenoir. Três interpretações da perspectiva interdisciplinar em educação em função de três tradições culturais distintas, p. 5.
[29] Refletir e fazer.
[30] Ivani Fazenda. Interdisciplinaridade: qual o sentido? , p. 41.
[31] Ricardo Hage Matos. O sentido da práxis no ensino e pesquisa em artes visuais: uma investigação interdisciplinar, p. 45.
sábado, 13 de setembro de 2008
História da Ciência: Bibliografia
HISTÓRIA, FILOSOFIA E DIVULGAÇÃO DA CIÊNCIA
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terça-feira, 9 de setembro de 2008
Breves considerações sobre o mito
BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O MITO
Diamantino Fernandes Trindade
A construção da ciência moderna foi moldada e desenvolveu-se sobre o pressuposto de que a linguagem analítico-experimental, que fragmenta, localiza, mede, calcula, com a pretensão de ser objetiva e racional, era a única que poderia explicar a natureza. Ao longo do tempo, a própria Ciência precisou abrir mão dessa pretensão e reconheceu que não se pode fazer Ciência sem recorrer a modelos que utilizam metáforas ou analogias.
Expressões consagradas como leis da natureza ou seleção natural são amostras da presença da linguagem analógica, metafórica e simbólica, linguagem que liga, associa, conecta, desenvolve campos de evocação buscando significações contextuais, tende a exprimir a afetividade e subjetividade e é a mais apropriada quando buscamos o sentido das coisas e da nossa própria existência. [1]
É possível dizer que os cientistas, ao tentar responder com teorias científicas a questões relacionadas com o sentido da existência humana utilizam, ainda que de forma inconsciente, a linguagem analógico-simbólica e invadem o campo do mito. O atributo principal do mito é orientar, em um plano intuitivo, a construção daquilo que Schumpeter chamou de visão do processo social, sem o qual o trabalho analítico não teria qualquer sentido. [2]
O mito não é contrário à Ciência, nem pertence ao passado da humanidade, mas faz parte do fazer ciência e da vida humana porque somos seres que buscamos constantemente o sentido e construímos um horizonte do sentido fundamentado em esperanças e intuições ainda não comprovadas, apenas explicadas e justificadas por mitos que adotamos e aos quais estamos ligados.
Mitos e magia não são coisas de mundos defuntos. E os mais lúcidos sabem disso, porque não se esqueceram de sonhar. Em 1932, Freud escreveu uma carta a Einstein que fazia uma estranha pergunta/afirmação: “Não será verdade que toda ciência contém, em seus fundamentos, uma mitologia?” [3]
Para termos consciência do mito que estamos vivenciando, é necessário fazer uma revisão de nossa vida e questioná-la. A partir de então, o mito será um norteador de sentimentos, valores e intenções que irão direcionar e motivar nossos pensamentos e ações. Pelo poder misterioso e transformador do mito, podemos encontrar pistas para buscar as potencialidades espirituais da vida humana.
Pela descoberta de nosso mito, entramos em contato com os nossos impulsos criativos; assim podemos viver uma vida mais plena, porque eles alargam o contexto de nossa existência e integram essa compreensão dentro de nós. Por sua capacidade de falar de nós mesmos, podem nos transformar e vincular a nossos semelhantes presentes ou passados. E sugerir que uma história maior está em ação, uma história que apoiará nossas preocupações fundamentais e nos conduzirá na direção que precisamos tomar. [4]
Tentar definir o mito é uma tarefa ingrata, pois sempre incorreremos em maior ou menor desvio de sua essência. Aurélio Buarque de Holanda [5] apresenta o seguinte conceito para o mito:
Representação de fatos ou personagens reais, exagerada pela imaginação popular, pela tradição; exposição de uma doutrina ou de uma idéia sob forma imaginativa em que a fantasia sugere e simboliza a verdade que deve ser transmitida.
Avançando um pouco mais, Mircea Eliade [6] diz:
A definição que a mim, pessoalmente, me parece menos imperfeita, por ser a mais ampla, é a seguinte: o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio.
O mito é uma das formas de interpretação da realidade. Não é simplesmente uma ficção, não significa apenas uma ilusão, pois trás em seu cerne verdades profundas.
Todos os povos têm um mundo invisível, uma ampliação da realidade, que coexiste lado a lado com a ciência, a tecnologia e, é claro, as artes. Às vezes ele é uno e partilhado por todos, como nas sociedades tradicionais, ao contrário do mundo moderno, onde classes, grupos ou segmentos sociais podem dar formas diferentes às expressões imaginárias. Mas em ambos “a vida é vivida num plano duplo: desenrola-se como existência humana e, ao mesmo tempo, participa de uma vida trans-humana, a do cosmos ou dos deuses”. [7]
Portanto não devemos desdenhar do mito como forma de interpretar a realidade.
[1] MO SUNG, Jung. Ciência, mito e o sentido da existência. In: Pugliesi, Márcio. Mitologia greco-romana: arquétipos dos deuses e heróis. São Paulo: Madras, 2003.
[2] FURTADO, Celso. O mito do desenvolvimento econômico, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
[3] ALVES, Rubem. Estórias de quem gosta de ensinar. 5 ed. Campinas: Papirus, 2002.
[4] BRANDÃO, Ayéres. Do mito do herói ao herói do mito: a jornada simbólica do professor. São Paulo: Ícone, 2005.
[5] HOLANDA, Aurélio Buarque de. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. São Paulo: Positivo, 2004.
[6] ELIADE, Mircea. Mito do eterno retorno. São Paulo: Mercuryo, 1992.
[7] JUNQUEIRA, Carmem. O mundo invisível. Conferência de abertura do III Encontro INFOP “Memória e Comunidade”. Universidade Federal do Pará, 1999.
Diamantino Fernandes Trindade
A construção da ciência moderna foi moldada e desenvolveu-se sobre o pressuposto de que a linguagem analítico-experimental, que fragmenta, localiza, mede, calcula, com a pretensão de ser objetiva e racional, era a única que poderia explicar a natureza. Ao longo do tempo, a própria Ciência precisou abrir mão dessa pretensão e reconheceu que não se pode fazer Ciência sem recorrer a modelos que utilizam metáforas ou analogias.
Expressões consagradas como leis da natureza ou seleção natural são amostras da presença da linguagem analógica, metafórica e simbólica, linguagem que liga, associa, conecta, desenvolve campos de evocação buscando significações contextuais, tende a exprimir a afetividade e subjetividade e é a mais apropriada quando buscamos o sentido das coisas e da nossa própria existência. [1]
É possível dizer que os cientistas, ao tentar responder com teorias científicas a questões relacionadas com o sentido da existência humana utilizam, ainda que de forma inconsciente, a linguagem analógico-simbólica e invadem o campo do mito. O atributo principal do mito é orientar, em um plano intuitivo, a construção daquilo que Schumpeter chamou de visão do processo social, sem o qual o trabalho analítico não teria qualquer sentido. [2]
O mito não é contrário à Ciência, nem pertence ao passado da humanidade, mas faz parte do fazer ciência e da vida humana porque somos seres que buscamos constantemente o sentido e construímos um horizonte do sentido fundamentado em esperanças e intuições ainda não comprovadas, apenas explicadas e justificadas por mitos que adotamos e aos quais estamos ligados.
Mitos e magia não são coisas de mundos defuntos. E os mais lúcidos sabem disso, porque não se esqueceram de sonhar. Em 1932, Freud escreveu uma carta a Einstein que fazia uma estranha pergunta/afirmação: “Não será verdade que toda ciência contém, em seus fundamentos, uma mitologia?” [3]
Para termos consciência do mito que estamos vivenciando, é necessário fazer uma revisão de nossa vida e questioná-la. A partir de então, o mito será um norteador de sentimentos, valores e intenções que irão direcionar e motivar nossos pensamentos e ações. Pelo poder misterioso e transformador do mito, podemos encontrar pistas para buscar as potencialidades espirituais da vida humana.
Pela descoberta de nosso mito, entramos em contato com os nossos impulsos criativos; assim podemos viver uma vida mais plena, porque eles alargam o contexto de nossa existência e integram essa compreensão dentro de nós. Por sua capacidade de falar de nós mesmos, podem nos transformar e vincular a nossos semelhantes presentes ou passados. E sugerir que uma história maior está em ação, uma história que apoiará nossas preocupações fundamentais e nos conduzirá na direção que precisamos tomar. [4]
Tentar definir o mito é uma tarefa ingrata, pois sempre incorreremos em maior ou menor desvio de sua essência. Aurélio Buarque de Holanda [5] apresenta o seguinte conceito para o mito:
Representação de fatos ou personagens reais, exagerada pela imaginação popular, pela tradição; exposição de uma doutrina ou de uma idéia sob forma imaginativa em que a fantasia sugere e simboliza a verdade que deve ser transmitida.
Avançando um pouco mais, Mircea Eliade [6] diz:
A definição que a mim, pessoalmente, me parece menos imperfeita, por ser a mais ampla, é a seguinte: o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio.
O mito é uma das formas de interpretação da realidade. Não é simplesmente uma ficção, não significa apenas uma ilusão, pois trás em seu cerne verdades profundas.
Todos os povos têm um mundo invisível, uma ampliação da realidade, que coexiste lado a lado com a ciência, a tecnologia e, é claro, as artes. Às vezes ele é uno e partilhado por todos, como nas sociedades tradicionais, ao contrário do mundo moderno, onde classes, grupos ou segmentos sociais podem dar formas diferentes às expressões imaginárias. Mas em ambos “a vida é vivida num plano duplo: desenrola-se como existência humana e, ao mesmo tempo, participa de uma vida trans-humana, a do cosmos ou dos deuses”. [7]
Portanto não devemos desdenhar do mito como forma de interpretar a realidade.
[1] MO SUNG, Jung. Ciência, mito e o sentido da existência. In: Pugliesi, Márcio. Mitologia greco-romana: arquétipos dos deuses e heróis. São Paulo: Madras, 2003.
[2] FURTADO, Celso. O mito do desenvolvimento econômico, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
[3] ALVES, Rubem. Estórias de quem gosta de ensinar. 5 ed. Campinas: Papirus, 2002.
[4] BRANDÃO, Ayéres. Do mito do herói ao herói do mito: a jornada simbólica do professor. São Paulo: Ícone, 2005.
[5] HOLANDA, Aurélio Buarque de. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. São Paulo: Positivo, 2004.
[6] ELIADE, Mircea. Mito do eterno retorno. São Paulo: Mercuryo, 1992.
[7] JUNQUEIRA, Carmem. O mundo invisível. Conferência de abertura do III Encontro INFOP “Memória e Comunidade”. Universidade Federal do Pará, 1999.
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