terça-feira, 9 de setembro de 2008

Breves considerações sobre o mito

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O MITO

Diamantino Fernandes Trindade



A construção da ciência moderna foi moldada e desenvolveu-se sobre o pressuposto de que a linguagem analítico-experimental, que fragmenta, localiza, mede, calcula, com a pretensão de ser objetiva e racional, era a única que poderia explicar a natureza. Ao longo do tempo, a própria Ciência precisou abrir mão dessa pretensão e reconheceu que não se pode fazer Ciência sem recorrer a modelos que utilizam metáforas ou analogias.

Expressões consagradas como leis da natureza ou seleção natural são amostras da presença da linguagem analógica, metafórica e simbólica, linguagem que liga, associa, conecta, desenvolve campos de evocação buscando significações contextuais, tende a exprimir a afetividade e subjetividade e é a mais apropriada quando buscamos o sentido das coisas e da nossa própria existência. [1]

É possível dizer que os cientistas, ao tentar responder com teorias científicas a questões relacionadas com o sentido da existência humana utilizam, ainda que de forma inconsciente, a linguagem analógico-simbólica e invadem o campo do mito. O atributo principal do mito é orientar, em um plano intuitivo, a construção daquilo que Schumpeter chamou de visão do processo social, sem o qual o trabalho analítico não teria qualquer sentido. [2]

O mito não é contrário à Ciência, nem pertence ao passado da humanidade, mas faz parte do fazer ciência e da vida humana porque somos seres que buscamos constantemente o sentido e construímos um horizonte do sentido fundamentado em esperanças e intuições ainda não comprovadas, apenas explicadas e justificadas por mitos que adotamos e aos quais estamos ligados.

Mitos e magia não são coisas de mundos defuntos. E os mais lúcidos sabem disso, porque não se esqueceram de sonhar. Em 1932, Freud escreveu uma carta a Einstein que fazia uma estranha pergunta/afirmação: “Não será verdade que toda ciência contém, em seus fundamentos, uma mitologia?” [3]

Para termos consciência do mito que estamos vivenciando, é necessário fazer uma revisão de nossa vida e questioná-la. A partir de então, o mito será um norteador de sentimentos, valores e intenções que irão direcionar e motivar nossos pensamentos e ações. Pelo poder misterioso e transformador do mito, podemos encontrar pistas para buscar as potencialidades espirituais da vida humana.

Pela descoberta de nosso mito, entramos em contato com os nossos impulsos criativos; assim podemos viver uma vida mais plena, porque eles alargam o contexto de nossa existência e integram essa compreensão dentro de nós. Por sua capacidade de falar de nós mesmos, podem nos transformar e vincular a nossos semelhantes presentes ou passados. E sugerir que uma história maior está em ação, uma história que apoiará nossas preocupações fundamentais e nos conduzirá na direção que precisamos tomar. [4]

Tentar definir o mito é uma tarefa ingrata, pois sempre incorreremos em maior ou menor desvio de sua essência. Aurélio Buarque de Holanda [5] apresenta o seguinte conceito para o mito:

Representação de fatos ou personagens reais, exagerada pela imaginação popular, pela tradição; exposição de uma doutrina ou de uma idéia sob forma imaginativa em que a fantasia sugere e simboliza a verdade que deve ser transmitida.

Avançando um pouco mais, Mircea Eliade [6] diz:

A definição que a mim, pessoalmente, me parece menos imperfeita, por ser a mais ampla, é a seguinte: o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio.

O mito é uma das formas de interpretação da realidade. Não é simplesmente uma ficção, não significa apenas uma ilusão, pois trás em seu cerne verdades profundas.

Todos os povos têm um mundo invisível, uma ampliação da realidade, que coexiste lado a lado com a ciência, a tecnologia e, é claro, as artes. Às vezes ele é uno e partilhado por todos, como nas sociedades tradicionais, ao contrário do mundo moderno, onde classes, grupos ou segmentos sociais podem dar formas diferentes às expressões imaginárias. Mas em ambos “a vida é vivida num plano duplo: desenrola-se como existência humana e, ao mesmo tempo, participa de uma vida trans-humana, a do cosmos ou dos deuses”. [7]

Portanto não devemos desdenhar do mito como forma de interpretar a realidade.
[1] MO SUNG, Jung. Ciência, mito e o sentido da existência. In: Pugliesi, Márcio. Mitologia greco-romana: arquétipos dos deuses e heróis. São Paulo: Madras, 2003.
[2] FURTADO, Celso. O mito do desenvolvimento econômico, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
[3] ALVES, Rubem. Estórias de quem gosta de ensinar. 5 ed. Campinas: Papirus, 2002.


[4] BRANDÃO, Ayéres. Do mito do herói ao herói do mito: a jornada simbólica do professor. São Paulo: Ícone, 2005.
[5] HOLANDA, Aurélio Buarque de. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. São Paulo: Positivo, 2004.
[6] ELIADE, Mircea. Mito do eterno retorno. São Paulo: Mercuryo, 1992.
[7] JUNQUEIRA, Carmem. O mundo invisível. Conferência de abertura do III Encontro INFOP “Memória e Comunidade”. Universidade Federal do Pará, 1999.

Nenhum comentário: